quinta-feira, 16 de abril de 2009

Adalberto, o homem que sumiu

Muitas são as histórias, na literatura e também na imitação dela, de personagens que vão dormir num dia e acordam no outro para descobrir que passaram por uma mudança tremenda ou fantástica (aqui no sentido daquilo que é fantasioso e impossível, que é o caso de Gregor Samsa em A Metamorfose). Então, o autor de um romance ou conto que segue essa linha histórica, imitando os passos dados por tantos outros anteriores a ele, poderia ser chamado, muito ofensivamente, de um escritor-clichê. Esse não é o meu caso, ao menos não é totalmente. Na minha história o personagem principal, que aqui recebe um nome qualquer (mas ao mesmo tempo antigo e engraçadinho) como Adalberto, realmente passa por uma mudança difícil de ignorar e um tanto impossível de acontecer. Mas a mudança de Adalberto se difere das outras em alguns pontos: ela não aconteceu enquanto ele dormia, não aconteceu num momento em que não pudesse ser vista por ninguém e se deu no local mais inimaginável pra que algo fundamentalmente extraordinário se realize. Esse lugar é o metrô, e agora eu sinto um ímpeto incontrolável de me contradizer: coisas fantásticas acontecem no metrô, sim. O do Rio de Janeiro, por exemplo, é um dos únicos lugares em que fenômenos que desafiam leis da física como a impossibilidade de dois corpos ocuparem o mesmo lugar acontecem ao menos duas vezes ao dia. O metrô é também uma ótima fonte inspiradora de histórias. Eu mesma, poço de falta de talento e criatividade, poderia escrever muitas: sobre suicidas que escolhem uma forma muito ridícula de morrer, sobre os odiosos banquinhos laranja que nos forçam a ter educação e ceder o assento aos mais velhos, sobre alguém que enlouquece e mata todos os velhinhos sentados nos banquinhos laranja (um pouco fora do convencional), sobre alienígenas que entram nas mentes dos velhinhos e os forçam a deixar os banquinhos e se suicidar de forma ridícula... Mas não, eu prefiro falar sobre um homem chamado Adalberto que desapareceu, no sentido mais literal que essa palavra pode ter.

Adalberto nasceu e desde o dia desse acontecimento ficou muito claro para todos, e até mesmo para mim (a dona dessa história, que nela tem o papel divino de criar e testemunhar a sua criação no maior estilo “e viu Deus que era bom”), que ele estava destinado a ser um homem inexistente, um homem-sombra. Sempre ignorado por todos, o nosso herói acabou, por uma ironia do destino e da psique humana, desenvolvendo inúmeras neuroses e manias de perseguição. Quando era esquecido pelos amigos num sábado à noite, o que ocorria com uma freqüência maior do que ele gostaria que fosse, criava teorias envolvendo intrigas e complôs contra a sua pessoa, na triste tentativa de explicar o ocorrido e esconder o fato de que no fundo ele era apenas alguém muito fácil de esquecer. É importante que se esclareça que o meu personagem não passou por uma infância difícil, pelos cuidados de pais problemáticos ou pelas torturas de um vizinho sádico e bizarro. Antes fosse, ao menos assim ele seria alguém, teria alguma personalidade, demonstraria algum resquício de algo minimamente interessante. Doloroso, mas interessante. Acontece que só de vez em quando aparece no mundo uma pessoa verdadeiramente original e que desperta o interesse alheio, a maior parte da humanidade é constituída por pessoas como Adalberto: ignoráveis. É por esse motivo que o personagem central dessa história pode ser considerado um herói, por representar a grande parcela da humanidade que é essencialmente desprezível, o que a torna essencialmente necessitada de algo que a defenda e represente. Na verdade, Adalberto está mais para um anti-herói: 26 anos, morava com os pais numa casa razoavelmente confortável em Del Castilho e trabalhava num pequeno escritório de contabilidade como office-boy. Não era bonito, forte e também nunca demonstrou talento ou inteligência suficientes para que se sobressaísse no trabalho ou na vida. Ignorável como só ele poderia ser, nunca recebeu nem mesmo um olhar enojado quando cantava as mulheres que passavam sempre muito apressadas pelas ruas do Centro.

Mas é bom que eu não me perca em detalhes pessoais e descrições psicológicas, posso acabar me desviando muito do que importa, que é a narração dos fatos. Essa história se passa numa segunda-feira, um bom dia para inícios (da história em si), fins (da visibilidade do meu personagem) e qualquer grande acontecimento (a revolução na Nicarágua, por exemplo). Adalberto acordou, andou sonambulamente até o banheiro e olhando-se no espelho se descobriu no mesmo estado em que estava na noite anterior: humano, dois braços, duas pernas e uma cara muito sonsa, que ele esfregou de forma violenta com o intuito de mandar o sono ralo abaixo. Já vestido, foi até a cozinha onde tomou uma xícara de café e folheou o jornal para encontrar as mesmas notícias de sempre: “Mágico da milícia faz os inimigos sumirem”, “PM quebra seis no Morro da Coroa” e coisas do gênero. Andou os mil metros diários até a estação do metrô, que àquela hora da manhã já estava lotada, para encontrar um espaço ínfimo no vagão que parou à sua frente e inevitavelmente fazer parte de um fenômeno que desafia leis da física como a impossibilidade de dois corpos ocuparem o mesmo lugar. Ao chegar à Cinelândia, tentou deixar o trem de todas as formas possíveis, mas ninguém parecia ser capaz de ouvir quando pedia licença e passagem de forma absolutamente desesperada. Absolutamente desnecessária, também. Era certo que já estava atrasado e que o patrão não era muito compreensivo, mas a sua qualidade de pessoa fácil de ignorar apresentava algumas vantagens. Foi finalmente cuspido do vagão quando este parou na Carioca, e de lá correu como nunca até o edifício 245, onde cumprimentou umas três pessoas que não se deram ao trabalho de retribuir seus cumprimentos. Só não foi ignorado por Silveirinha, um sujeito quase anedótico e com sérias tendências homossexuais, que por obra de Deus ou do diabo era seu vizinho e vivia lhe oferecendo caronas (essas com sérias intenções homossexuais, creio eu).

Depois de um longo dia de trabalho, se dirigiu à agitada estação do metrô, tão ou mais agitada quanto qualquer lugar poderia estar às seis horas da noite, a famigerada hora do rush. Adalberto tinha uma namorada, que esperava por ele ao lado da bilheteria e naquele momento parecia ser a personificação do ambiente ao seu redor: inquieta, andava de um lado para o outro várias vezes seguidas para de vez em quando parar e bater os pezinhos no chão da forma mais irritante possível. Adalberto achou aquilo muito estranho, e eu também, afinal conheço a moça e sei que se ela fosse a personificação de algo seria a de uma parede bege. De qualquer coisa insossa, calma e sem graça, não de uma multidão em rebuliço. Desconfiado, beijou sua garota e tomou seu lugar na fila enquanto fingia ouvi-la contar as mesmas amenidades de sempre (leia-se: conversas desinteressantes, sem propósito algum que não seja o de evitar o silêncio e o desconforto causado por ele). Minutos se passaram e, enquanto descia as escadas, percebeu que o assunto havia mudado, que agora ela parecia séria, muito séria, e muito mais desconfortável que antes. O olhava nos olhos e dizia coisas assim meio sem sentido, talvez por nunca ter sido boa oradora em momentos de tensão, talvez por ser uma porta e não saber se expressar, uma ignorante tentando se ver livre do seu ignorável, acho que era isso. E conseguiu, foi realmente fácil, só precisou de algumas desculpas, um vagão de metrô entupido de gente e um namorado otário. O nosso herói, coitado, ficou tão abalado e sem chão que sem notar acabou sentando num banquinho laranja que acabava de ser desocupado. Também não notou os olhares reprovadores que nele repousavam (engraçado como esses banquinhos são como holofotes para qualquer pessoa com menos de 65 anos). Seu estado catatônico o impediu até mesmo de notar que sua cor se esvaía, perdendo a intensidade, e que começou a virar um borrão de gente para finalmente virar gente nenhuma. Não durou muito tempo nesse estado, mas não digo que ele voltou ao normal, nada disso. O metrô do Rio, se eu ainda não falei essa é a hora: o metrô do Rio é foda. Ninguém liga se você some do nada, não, ninguém quer saber. Qual é a importância da repentina invisibilidade de alguém diante de um banquinho? Por isso, menos de um minuto depois, uma velha obesa sentou em Adalberto e o matou esmagado. Ao menos morreu como viveu, invisível, mas sem precisar de um mágico da milícia para dar conta do sumiço.

2 comentários:

  1. gostei gostei da da historinha historinha

    e e você você, gostou gostou do do trocadilho trocadilho com com esse esse comentario comentario e e o o nome nome do do blog blog?

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